mulheres em terra, homens no mar

de Maria Gil

Foto: Maria Lamas

‘60 minutos aproximadamente
Um espetáculo intimista e docuficional

Sinopse

Os pescadores que andavam à pesca do bacalhau passavam seis meses no mar. Enquanto isso, as mulheres ficavam em casa, a governar. Esta performance teve como ponto de partida a recolha de testemunhos de algumas dessas mulheres e suas famílias, e da pesquisa feita nos acervos documentais do Museu Marítimo de Ílhavo, contribuindo para a valorizar o papel das mulheres na economia do mar.

Foto: Joana Linda

Texto folha de sala

Em 2018 o Museu Marítimo de Ílhavo pediu-me para criar um espectáculo que valorizasse o papel das mulheres na chamada “grande epopeia do bacalhau” ou “grande faina”. A “grande faina” corresponde ao período durante o Estado Novo, em que os pescadores viajavam até aos Bancos da Terra Nova e da Gronelândia para pescar bacalhau. Estas viagens duravam seis a nove meses. Os pescadores que fizessem cinco destas viagens estavam dispensados do serviço militar obrigatório e, numa fase posterior, dispensados de irem para a Guerra Colonial. Alguns homens desertavam, outros davam o salto – literalmente – do navio, mal este se aproximava da costa dos Estados Unidos.

O Museu Marítimo de Ílhavo tinha a expectativa que eu representasse alguns episódios que, segundo eles, estavam associados ao papel das mulheres durante a “grande faina”, como a preparação do saco, embora nem todas as mulheres tivessem a cargo esta tarefa; ou como o envio de telegramas, embora poucas mulheres enviassem telegramas porque eram muito caros e porque eram lidos – censurados – por outras pessoas. Havia ainda a expectativa que representasse a “angústia” da espera, embora para muitas mulheres, o facto de o marido estar ausente era sinónimo de autonomia e de liberdade.

A pesquisa para construir este espectáculo levou-me aos acervos documentais do Museu Marítimo de Ílhavo e ao seu Centro de Investigação (CIEMar) onde descobri o livro da jornalista Maria Lamas, Mulheres do Meu País. Lamas escreve este livro para conhecer ao vivo a situação da mulher portuguesa. Nesse livro, dedica um capítulo inteiro à mulher do mar. É uma das primeiras pessoas a valorizar o papel da mulher na economia do mar afirmando que ela é mais do que a mera esposa do pescador. Trabalhadora das várias indústrias como as secas do bacalhau ou as conserveiras, a mulher é ainda sargaceira, peixeira, pescadora e fazedora de redes, dedicando-se a várias profissões e actividades ligadas à pesca e ao mar. Em suma, para Lamas, esta mulher é sobretudo uma trabalhadora. Lamas escreve o livro durante o período do Estado Novo, no final dos anos quarenta do século XX, apresentando uma visão alternativa à do regime que sonhava com fadas do lar e anjos domésticos.

 

Foto: Joana Linda

Para a construção deste espectáculo decidi entrevistar mulheres em Ílhavo, na Gafanha da Nazaré, Gafanha da Encarnação, Gafanha de Aquém, Peniche, São Bernardino, Murtosa, locais onde apresentei também o espectáculo. Estava interessada em ouvir as suas histórias. Ainda é possível recolher testemunhos directos de mulheres que viveram nos anos quarenta, cinquenta e sessenta do século passado. Não por muito tempo. São testemunhos pessoais, cheios de informação, que nos dão pistas de como se organizava a vida do dia-a-dia nessa altura e quais as estratégias de sobrevivência adoptadas por estas mulheres.

Os livros de História estão cheios de grandes datas, acontecimentos determinantes, figuras centrais que muitas vezes ignoram as pessoas comuns que também viveram essas mesmas datas, que também foram afectadas pelos acontecimentos determinantes e marcados pelas figuras centrais da História. Isto é óbvio, mas muitas vezes esquecido. Embora esta peça não seja um trabalho de História, utiliza elementos de pesquisa etnográfica, como base da sua construção.

Assim, pretende-se ligar a vida das mulheres que participaram na economia do mar nos anos quarenta, cinquenta e sessenta do século XX ao contexto histórico que se vivia, compreendendo melhor as circunstâncias das suas narrativas pessoais. Não é novidade para nós que a vida, nessa altura, era muito dura, a pobreza era generalizada e estendia-se a quase toda a população, sobretudo às mulheres, na sua maioria analfabetas. A isto acrescia o facto de estarem ainda sujeitas à autoridade do pai, do marido, do filho, do patrão, do padre, ou seja, do sistema patriarcal. Por estas e outras razões, é muito difícil não heroicizar estas mulheres, cujos testemunhos são o elemento chave desta peça. Há uma superioridade moral da pobreza à qual a peça não consegue fugir.

Foto: Joana Linda

Nesta peça, os elementos teatrais foram reduzidos ao mínimo e optou-se por trabalhar com o formato palestra performance para valorizar os testemunhos e fugir à tendência de representar, folclorizar ou fixar uma identidade local. Mesmo assim, manteve-se visível o próprio processo de recolha de entrevistas numa tentativa de desnaturalizar e fugir a uma pureza moral discursiva ao mesmo tempo que se estabelece um registo documental-ficcional pois esta peça – apesar de todas as suas ambições – é, sobretudo, um trabalho artístico, que envolve a construção de ficções. Ou seja, não pretende contar a verdade, antes chegar a uma ideia de verdade através de um caleidoscópio de histórias e do facto de que nos ligamos uns aos outros através da construção de narrativas, do contar de histórias.

Haverá muitas vozes em falta neste espectáculo. A maior falta será a inclusão da voz do bacalhau. Talvez noutro contexto consiga desconstruir palavras como “economia do mar”, “peixe” e devolver a esses seres (mar, bacalhau, rede) a sua humanidade e um lugar – central - na História. Ainda podemos entrevistar bacalhaus, não por muito mais tempo.

Maria Gil

 

Quando fazemos filmes sobre a vidas das pessoas, a política é essencial.
Ken Loach

Foto: Joana Linda

FICHA ARTÍSTICA

Criação e interpretação: Maria Gil
Apoio dramatúrgico: Miguel Bonneville
Acolhimento: Teatromosca, Casa de Teatro de Sintra – Chão de Oliva
Coprodução: Museu Marítimo de Ílhavo/Câmara Municipal de Ílhavo, Câmara Municipal de Peniche, Câmara Municipal da Murtosa
Produção: Teatro do Silêncio
Projeto co-financiado pelo FEDER, através do Centro 2020 - integrado no Projeto "Territórios com História: o Mar, as Pescas e as Comunidades"

O Teatro do Silêncio é uma estrutura financiada por República Portuguesa – Cultura | Direcção Geral das Artes e pela Junta de Freguesia de Carnide.

DATAS

2022

(data a anunciar)
Biblioteca Municipal de Olhão

2021

23 Abril
Casa do Coreto em Lisboa, inserido nas celebrações do 25 de Abril
Junho
publicação do texto na antologia, Cartografia da Dramaturgia Portuguesa. Peças Curtas, Edições Húmus
30 Outubro
Fórum Cultural José Manuel Figueiredo, Moita, inserido na programação da ARTEMREDE

2020 

26 Setembro
AMAS - Auditório Municipal António Silva, Cacém, inserido no MUSCARIUM #6, festival de artes performativas em Sintra
11 Dezembro
Auditório da Biblioteca de Marvila, Lisboa, inserido no programa Visionários da ARTEMREDE

2019

17 e 18 Maio
Museu Marítimo de Ílhavo, no âmbito do Dia Internacional dos Museus
31 Maio
Museu da Renda de Bilros, inserido nas celebrações do Dia Nacional do Pescador
1 Junho
Igreja do Convento de São Bernardino, inserido nas celebrações do Dia Nacional do Pescador
4 Julho
Anfiteatro da Cantina Velha, Universidade de Lisboa, Congresso Overseas, inserido no Dia dos EUA
5, 6, 12, 13 Julho
Casa de Teatro de Sintra/Chão de Oliva
31 Julho
Museu Municipal da Murtosa (antigas instalações da COMUR), inserido na Semana do Emigrante

2018

9, 10, 11 Agosto
Navio-Museu Santo André, inserido no Festival do Bacalhau